Introdução
Este trabalho é um comentário ao livro O Nascimento da Tragédia ou Mundo Grego e Pessimismo de Friedrich Nietzsche.
O trabalho irá debruçar-se sobre cinco pontos principais: o que é a tragédia; qual o significado dos dois elementos - o apolíneo e o dionisíaco; os quatro momentos de dominação apolínea e dionisíaca na história da cultura grega; qual a importância da música; e, por fim, uma crítica ao socratismo e à concepção até então predominante da arte grega (a sobrevalorização do aspecto apolíneo).
Este comentário tem como objetivo uma melhor compreensão da perspectiva de Nietzsche acerca do nascimento da tragédia e da importância do elemento dionisíaco.
Tragédia
Etimologicamente, τραγῳδία, (τράγος bode e ᾠδή canto), tragédia significa o canto do bode. Remete-nos para os grandes concursos teatrais realizados em honra do Deus Dioniso. Entretanto, qualquer que seja a interpretação deste canto, desde a mais simples, que vê no bode o prémio para o melhor canto, ou aqueles que vêem no bode a representação do vício e da luxúria que alimenta a ação dramática, até às mais complexas, que o integram em contextos simbólico-religiosos de natureza expiatória e propiciatória, muita obscuridade envolve esta etimologia. 1
Mas há duas características que facilitam a compreensão do seu significado e que podemos sempre associar à tragédia: por um lado, a convicção de que à tragédia pertence um estilo nobre e grandioso, apropriado ao alto estatuto das personalidades que a protagonizam; por outro lado, a noção de instabilidade da Fortuna que, acompanhada do sentimento da fragilidade da vida humana, arrasa as vãs esperanças dos mortais. 2
Além disso, há muitas espécies de definições derivadas sobre a tragédia.3 De eminente importância são as definições oriundas do horizonte filosófico, que procuram interpretar os textos a partir de uma doutrina (a tragédia é adaptada à primordial filosofia do autor).
Uma destas definições é a interpretação de Nietzsche em sua obra O Nascimento da Tragédia. O autor vê a tragédia como o resultado do encontro entre Dioniso e Apolo enquanto representantes de dois planos opostos da realidade. 4
Elemento apolíneo e elemento dionisíaco
Apolo é apresentado como o deus da beleza, das medidas, das proporções, dos traços, da ordem, da racionalidade, do universo onírico. É o deus do principium individuationis 5, em que cada ser é reconhecido como único e individual. O deus faz dessa bela aparência uma ilusão que oculta os sofrimentos da existência.
Dioniso é apresentado como o deus da desmesura, das orgias, do caos, da desordem, da desconstrução, da embriaguez. O deus que une o homem e a natureza, ultrapassando o convencional, destruindo o estabelecido pelas regras.
Através do relacionamento entre o sonho apolíneo e a embriaguez dionisíaca, o homem é capaz de sentir o prazer de sua existência. Dioniso mostra-se através de Apolo e Apolo só existe enquanto expressão daquele. Aqui é rompido o principium individuationis, aquilo que nos torna seres individuais. O homem, assim, se une à natureza, ao Uno primordial 6: não é mais artista, se torna obra de arte.
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1 - José Pedro Serra, Pensar o Trágico, 2006, pp. 25, 34 e 39.
2 - Ibidem, p. 30.
3 - Ibidem, p. 51.
4 - Ibidem, p. 53: Dioniso é a fúria tempestuosa que se mostra em cada ser, o delírio embriagado do poder criador da vida, o êxtase inebriante da fusão informe de todas as coisas; Apolo é a bela aparência, é a serenidade sonhada e ensolarada dos deuses olímpicos, é o princípio de plasticidade do real.
5 - O principium individuationis é toda a condição que separa seres da mesma espécie como seres individuais, é aquilo que diferencia cada ser em si do Universo.
6 - O Uno Primordial, em contraposição ao principium individuationis, é a unidade primordial de todas as coisas, é o rompimento das barreiras que separam um ser de outro e esses do universo.
A força Apolínea e a força Dionisíaca na história da cultura grega 7
Nietzsche irá ressaltar quatro momentos da antiguidade grega em que os elementos dionisíaco e apolíneo se alternam e mais tarde se unem, surgindo assim a tragédia:
Primeiro Momento - Dioniso: (…) podemos demonstrar a existência de festas dionisíacas, cujo tipo, na melhor das hipóteses, se apresenta em relação ao tipo da festa grega como o barbudo sátiro, cujo nome e atributos derivam do bode, em relação ao próprio Dioniso. Quase por toda parte, o centro dessas celebrações consistia numa desenfreada licença sexual, cujas ondas ultrapassavam toda vida familiar e suas veneradas convenções. 8
Segundo Momento - Apolo: (…) Contra as excitações febris dessas orgias (…) os gregos permaneceram inteiramente assegurados e protegidos durante algum tempo pela figura, a erguer-se aqui em toda a sua altivez, de Apolo, o qual não podia opor a cabeça da medusa a nenhum poder mais ameaçador do que esse elemento dionisíaco brutalmente grotesco. 8
Terceiro Momento - "Concílio": (…) por fim, das raízes mais profundas do helenismo começaram a irromper impulsos parecidos: agora a ação do deus délfico restringiu-se a tirar das mãos do poderoso oponente as armas destruidoras, mediante uma reconciliação concluída no devido tempo. Essa reconciliação é o momento mais importante na história do culto grego (…) [mas] no fundo, o abismo [entre as duas forças] não se encontrava superado. 8
Quarto Momento - Nasce Dioniso apolineamente e "musicalmente": (…) os sofrimentos despertam o prazer e o júbilo arranca do coração tons dolorosos. Da mais elevada alegria soa o grito de horror ou o lamento nostálgico por uma perda irreparável. (…) O cântico e a linguagem gestual desses entusiastas de tão dúplice disposição eram, para o mundo grego homérico, algo de novo e inaudito: a música dionisíaca, em particular, agitou nele espantos e pavores. Se a música aparentemente já era conhecida como uma arte apolínea, ela era apenas, a rigor, enquanto batida ondulante do ritmo, cuja força imagética foi desenvolvida para a representação de estados apolíneos. (…) Mantinha-se cautelosamente à distância aquele preciso elemento que, não sendo apolíneo, constitui o caráter da música dionisíaca e, portanto, da música em geral: a comovedora violência do som, a torrente unitária da melodia e o mundo absolutamente incomparável da harmonia. No ditirambo dionisíaco, o ser humano é incitado a uma intensificação extrema de todas as suas capacidades simbólicas (…) a unicidade como génio da espécie e mesmo da natureza. É então que a essência da natureza deverá expressar-se simbolicamente. 8 A excitação dionisíaca tem o poder de comunicar a toda uma massa essa faculdade artística que possibilita a alguém ver-se rodeado por um bando de espíritos semelhante, com o qual ela sabe que está intimamente unida. Esse processo do coro trágico constitui o fenómeno originário dramático: alguém que se transforma perante si próprio, agindo então como se tivesse penetrado noutro corpo, noutro carácter. 9
Assim, contrariando toda uma tradição que avaliava a cultura helénica pela sua qualidade harmoniosa, Nietzsche sublinha a necessidade da grandiosa cultura grega de romper com o cotidiano, com as regras estabelecidas. Deste modo, sugere um lugar fundamental para o elemento irracional do humano como impulso dissolvente da rigidez normativa e génio de anulação da individualidade (impulso dionisíaco).
De facto, Apolo e Dioniso são dois impulsos opostos, contraditórios. Contudo, são complementares da criação estética e, sendo assim, o dionisíaco deve poder manifestar-se apolineamente. 10
Desta forma, para Nietzsche, não é o enredo o elemento fundamental da tragédia, mas sim, a força dionisíaca que arrebata o indivíduo e os seus limites, dissolvendo-o no todo.11 O mito trágico deve ser compreendido como uma espécie de representação simbólica do irrepresentável, pois só como fenômeno estético podemos ver legitimada a existência do mundo.
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7 - Rafaela Pedreira Martins, Nietzsche e a música: uma análise de "O nascimento da tragédia", 2012, pp. 26-27.
8 - O Nascimento da Tragédia, 2 pp. 30-33, in Obras Escolhidas de Nietzsche, vol. 1, Trad. Teresa R. Cadete, 1996.
9 - Ibidem, 8 p. 64.
10 - A influência de Schopenhauer na filosofia do Nietzsche de O Nascimento da tragédia é fundamental: podemos comparar Apolo - o deus das aparências, o principium individuationis - à descrição de Schopenhauer do mundo como Representação - aquele que impõe à realidade o espaço e o tempo; por outro lado, Dioniso - aquele que desconstrói, proclamando a união de todas as coisas (o uno primordial) - pode ser relacionado com a Vontade schopenhaueriana. A Vontade é descrita por Schopenhauer, em O Mundo como Vontade e Representação, como diferente de seu fenómeno e formas fenomenais (as objetivações da Vontade). Ela o é uma vez que não está sob o domínio da razão, está fora do espaço e do tempo e, portanto, fora do principium individuationis. O conceito de vontade é inseparável do princípio da representação, que se trata de uma forma de visão do mundo onde este se compõe de duas metades inseparáveis: o sujeito e o objeto - o objeto tem como característica o espaço e o tempo - a pluralidade - enquanto o sujeito é indivisível e único. Assim, o mundo como representação se apresenta como objeto para o sujeito. Schopenhauer ainda afirma que a ciência é uma forma de representação do mundo submetida ao princípio de razão que busca compreender os padrões das leis naturais e imutáveis. Porém Schopenhauer apresenta uma outra forma de conhecimento do mundo: (...) a essência do mundo e o verdadeiro substrato dos fenómenos, aquilo que está liberto de toda a mudança e, por conseguinte, é conhecido com uma verdade igual para todos os tempos (...) este modo de conhecimento é a arte (SCHOPENHAUER, §36, p. 241). - Rafaela Pedreira Martins, Nietzsche e a música: uma análise de "O nascimento da tragédia", 2012, pp. 11-12.
11 - Contrariando Aristóteles, segundo o qual o enredo é a composição de feitos e a alma e o primeiro princípio da tragédia. [Poética, 1450 a 4-5 e 38-39].
Importância da música
Nietzsche reconhece a música como sendo a arte propriamente dionisíaca e considera as artes plásticas como sendo apenas uma manifestação artística do apolíneo.
A sua tese causa polêmica ao afirmar que a música e o êxtase, associados ao ditirambo, teriam a capacidade de quebrar com a regência das estruturas do logos. Por isso, a música deve ser entendida não através de conceitos de beleza estética, mas como uma linguagem universal, pois ela mantém uma relação estreita com a verdadeira essência de todas as coisas.
O músico dionisíaco é destituído dos limites identitários. Ele próprio vive sem imagens: é um sofrimento puro e primordial num estado de abnegação mística dos limites do indivíduo e de unidade com o todo.
Crítica ao socratismo
A partir do que anteriormente foi exposto, Nietzsche afirma que o declínio da civilização grega se deu a partir do desaparecimento do espírito dionisíaco. Entretanto, na Modernidade era possível perceber o ressurgimento gradual desse espírito dionisíaco através da música de Wagner, expondo todas as limitações e incoerências do socratismo científico (essa crença superficial e enganadora da arte).
Para o filólogo, desde Sócrates e Eurípedes, o Ocidente estruturou-se sobre princípios racionais e científicos. Esta mentalidade representa um afastamento em relação à idade trágica dos Gregos em que havia um reconhecimento do fundo de sofrimento e dor da existência.
Neste ponto, Nietzsche apresenta uma comparação entre Homero e Arquíloco: completamente opostos um ao outro, Homero como poeta objetivo, sonhador, ingénuo e apolíneo, a sua poesia é a imagem das coisas mundanas, enquanto Arquíloco, poeta subjetivo, apaixonado, lírico e selvagem, a sua poesia liga-se ao próprio "eu" com os seus intensos sentimentos interiores. A respeito deste artista subjetivo, nós apenas o conhecemos como um mau artista, pois a modernidade faz-nos submeter a subjetividade e a individualidade à objetividade, pois acredita-se erroneamente que sem esta objetividade a credibilidade da obra de arte é comprometida. Essa visão da modernidade a respeito do poeta lírico, segundo Nietzsche, é um dos problemas estéticos a serem resolvidos. É preciso recriar a visão do poeta subjetivo enquanto artista, com toda sua intensidade de paixões e desejos.
Conclusão
Para Nietzsche, a tragédia - entre a sua dramatização inicial e até antes de Eurípedes - é compreendida como o género artístico que melhor exprime os dois elementos dionisíaco e apolíneo. Na tragédia o dionisíaco deve poder manifestar-se apolineamente e o apolíneo deve apresentar-se e desenvolver-se como a encenação do dionisíaco.
O filólogo defende que só como fenómeno estético podem a existência e o mundo justificar-se. Nós temos tanta consciência a respeito do significado da nossa existência, quanto aqueles soldados pintados em tela têm consciência da batalha representada na pintura. Todo o nosso saber a respeito do mundo e da arte é totalmente ilusório. Apenas quando o génio criador da obra de arte se funde com o uno primordial é que ele toma uma consciência do que é a essência da arte e do mundo. 12
Por isso, a arte é a única forma de cura para essa realidade desagradável e dolorosa: através da arte, o horrível se transforma em sublime e o absurdo se transforma em cómico. O êxtase dionisíaco ofusca esta nossa insignificante realidade cotidiana.
Este êxtase só existe enquanto houver a tensão entre as duas forças. Mas ela foi desfeita com racionalismo de Sócrates e Eurípedes. Este racionalismo afirma erradamente que só o sábio é feliz, pois para ser feliz é preciso conhecer a ideia de felicidade. A cultura moderna foi dominada por este socratismo estético. Assim, se gera uma forma estética inadequada a representação do irrepresentável. O apolíneo no artista socrático não consegue ser exibição simbólica do dionisíaco.
Portanto, o mito trágico deve ser entendido como uma representação imagética da sabedoria dionisíaca por métodos artísticos apolíneos; ele leva o mundo fenomenológico até aos limites em que ela se renega a si mesma e procura refugiar-se regressando ao seio da realidade verdadeira e única. 13
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12 - O Nascimento da Tragédia, 5 pp. 48-49, in Obras Escolhidas de Nietzsche, vol. 1, Trad. Teresa R. Cadete, 1996.
13 - Ibidem, 22 p. 155.
Bibliografia
NIETZSCHE, Friedrich, O Nascimento da Tragédia ou Mundo Grego e Pessimismo, in Obras Escolhidas de Nietzsche, vol. 1, Trad. Teresa R. Cadete, Círculo de Leitores, 1996, pp. 7-172.
SERRA, José Pedro, Pensar o Trágico, Fundação Calouste Gulbenkian, 2006, pp. 24-77.
KENNY, Anthony, História Concisa da Filosofia Ocidental, Trad. Desidério Murcho, Temas e Debates, 2003, pp. 373-384.
DAVIS, Michael, A poesia da filosofia. Sobre a Poética de Aristóteles, Trad. Verlaine Freitas, 1992, pp. 13-42.
MARTINS, Rafaela Pedreira, Nietzsche e a música: uma análise de O nascimento da tragédia, Universidade de São Paulo, 2012, pp. 1-38.